Parece o mundo de pernas para o ar. A razão democrática e o sentido de justiça virados do avesso.
Mamadou Ba, corajoso e perseverante militante contra o racismo, pela igualdade e pelos direitos humanos, foi durante anos caluniado e ameaçado (inclusive de morte), por gente racista e xenófoba, sem que a justiça portuguesa fizesse mais que arquivar queixas. Agora essa mesma justiça decide levá-lo a julgamento por uma queixa de difamação apresentada por alguém já condenado pelos tribunais por coacção agravada, posse ilegal de armas, ofensa à integridade física qualificada, discriminação racial, difamação, sequestro e extorsão.
Custa a acreditar que um Estado de direito e democrático possa mostrar-se como se fizesse uma grotesca caricatura de si mesmo. Não é sequer uma forma de relativismo moral que, bem sabemos, já andava por aí, e que faz equivaler os valores de direitos humanos e a ilegitimidade das mais ignóbeis discriminações. É escolher virar a democracia de pernas para o ar.
E é por isso que demonstrar toda a minha solidariedade com Mamadou Ba e com os destemidos militantes do combate antirracista e dos direitos humanos não é só uma forma de estar ao lado de quem se vê arrastado para um processo alucinante e que, uma vez mais, lhes causa danos pessoais. É também uma forma, e bem urgente, de estar ao lado de uma democracia que não desista de garantir igualdade e direitos humanos. Porque nessa altura ela poderá chamar-se ainda democracia, mas será uma forma vazia, pronta a ser amachucada, abusada e deitada fora por todos os que sempre estiveram do lado da discriminação, do insulto, da ameaça, da agressão e da morte.
Força, Mamadou, nunca estás sozinho.
Sandra Monteiro
jornalista