A constituição, o direito, e as leis não existem numa esfera separada da sociedade. Se é verdade que, em princípio, num governo democrático a constituição emana da vontade popular, e também que são os nossos representantes eleitos que escrevem, aprovam, e ratificam as leis, é, porém, o nosso direito vivo que orienta a forma como estas leis devem ser aplicadas a situações concretas. Este direito apenas se torna inteligível à luz dos valores, aspirações, e sonhos que partilhamos e pelos quais vivemos em grupo.
Como tal, cada ato ou decisão judicial é também um ato político, apesar de aqueles dependerem, para a sua aceitação social, deste facto permanecer oculto. Contudo, em casos como a recente decisão do Ministério Público de levar Mamadou Ba a julgamento por uma queixa por difamação do neonazi Mário Machado, ou a decisão do Juiz Carlos Alexandre de arquivar a queixa por difamação de Fernando Rosas contra este último, a dimensão política do ato torna-se por demais óbvia, e todos nós, como sociedade civil, somos chamados a afirmar de forma clara e inequívoca que estes não são os nossos valores, não é por aqui que passa o nosso futuro, não deixaremos que o sonho de uma sociedade antirracista morra asfixiado.
Para mim, para os meus, para muitos – tantos que não cabem neste site ou em qualquer abaixo-assinado –, Mamadou Ba dá corpo ao sonho, enquanto a quem agora o acusa não reconhecemos qualquer honra a proteger.
Termino, lembrando que a questão de estabelecer quem tem ou não honra a defender não é de somenos importância. Durante os séculos em que a escravatura permaneceu legal e, depois, durante o regime do indigenato, a noção de que, primeiro as pessoas escravizadas, depois as pessoas Negras, não tinham honra a proteger permaneceu central ao aparato de repressão e extração do império português. Durante séculos, portanto, a honra era distribuída de acordo com uma linha de cor, e não de acordo com a relativa probidade, dignidade, e distinção dos indivíduos.
É inconcebível que agora, através de um par de atos judiciais, nos estejamos de novo a encaminhar este abjeto estado de coisas. É inaceitável que seja negado a pilares centrais da nossa sociedade o terem honra a defender, enquanto esta é reconhecida a neonazis condenados e convictos.
Por seres, mais uma vez, o baluarte que nos protege desta investida, obrigado Mamadou Ba.
João Figueiredo
Käte Hamburger fellow, Universidade de Münster, Alemanha.