Num país que construiu a sua democracia e baseia a liberdade de todos os seus cidadãos na rejeição do racismo e do fascismo, cuja Constituição “não consente”, justamente, “associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”, o que pretende o Ministério Público ao processar um ativista antirracista como Mamadou Ba, ainda por cima fazendo-o em nome de um racista e fascista assumido como Mário Machado? Não sabe a justiça portuguesa, depois de o ter investigado e condenado repetidas vezes, quem é Mário Machado?
É agora a justiça um instrumento de banalização do racismo? Não está ela comprometida com os valores democráticos da Constituição? Desde quando se sente ela obrigada a falar em nome de quem comprovadamente promove valores racistas, e atuou e foi condenado na justiça por tê-lo feito? Desde que uma juíza decidiu há meses eximir Mário Machado do “[cumprimento de uma] medida de coação” decretada pela própria justiça, “enquanto estive[sse] ausente no estrangeiro, designadamente na [Ucrânia]”? Também então tinha a justiça portuguesa motivos para achar que Machado merecesse saltar as regras para “prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas”?
Julgará o Ministério Público português que processar, em nome de um racista, um dos cidadãos mais empenhados na luta antirracista prescrita pela própria Constituição, é uma forma de “exercer a ação penal orientado pelo princípio da legalidade” e de “defender a legalidade democrática, nos termos da Constituição” (art. 2º do Estatuto do Ministério Público)?
Deve haver poucos sintomas de degradação da democracia como quando os cidadãos se sentem, não apenas abandonados, mas acusados pelo sistema judicial por se comprometerem com a defesa da própria democracia.
Manuel Loff
historiador