SOLIDARIEDADE COM MAMADOU BA
À primeira vista, o processo em curso contra Mamadou Ba não parece dizer respeito aos trabalhadores e às suas organizações. Mamadou Ba é visado enquanto activista antiracista, primeiro por uma queixa particular de Mário Machado, depois pelo Estado português, que através do Ministério Público decidiu apoiar a queixa.
O assunto está recheado de ironias. A mais recente é a de o mesmo Estado português ter dispensado o delinquente neonazi de se apresentar periodicamente à polícia, permitindo-lhe assim ir para a Ucrânia combater “os russos”; e de o Estado ucraniano o ter recambiado para a procedência, com o pedido expresso de que lhe fossem denunciados quaisquer outros casos igualmente indesejáveis, para poder igualmente recambiá-los. Se um tribunal português saltou sobre a lei para bajular a Ucrânia, coqueluche da opinião pública internacional, levou neste caso a resposta merecida.
Mas o Estado português, pela mão do Ministério Público, não desiste de proteger o delinquente neonazi. E, assim sendo, junta-se à sua queixa, para perseguir a liberdade de expressão de quem se limitou a recordar em público os qualificativos que o mesmo Estado português foi aplicando a Mário Machado, ao longo dos anos e de repetidas façanhas do seu grupo contra pessoas isoladas.
Talvez não tenhamos ainda chegado ao ponto de se perseguir Mamadou Ba por se considerar escandaloso um negro lembrar a um branco o longo cadastro que este acumulou. Talvez um activista antiracista branco também fosse perseguido com a mesma sanha que Mamadou Ba, porque o importante para o Ministério Público era proteger o delinquente neonazi contra a memória do seu próprio passado. Talvez o alvo para o Ministério Público fosse mesmo a liberdade de expressão, quem quer que a exercesse.
Mas, se isto pode momentaneamente atenuar a suspeita de um viés racista na Justiça portuguesa, vem por outro lado sublinhar que dizer verdades incómodas está a tornar-se um crime e que poderá ser sentado no banco dos réus quem quer que difunda verdades incómodas. E é aqui que se torna clara a relevância que tem para os trabalhadores o caso de Mamadou Ba e se torna claro quanto o futuro da nossa luta comum depende do desfecho deste caso.
O caso de Mamadou Ba é a ponta visível de um volumoso iceberg que ameaça afundar a liberdade de expressão. Sabemos, na RTP, o que isso significa quando vemos várias pessoas serem alvos de retaliação por terem exposto a existência de irregularidades, nomeadamente na atribuição de trabalho suplementar (uma coordenadora que foi destituída depois de ter recusado caucionar as irregularidades e que agora é alvo de um processo para despedimento; três membros da anterior CT, que são alvo de um processo judicial; um trabalhador, que é alvo do mesmo processo por ter colaborado com a investigação levada a cabo pela CT).
Se o processo de Mamadou Ba seguir pelo caminho que tem tido até aqui, é a liberdade de todos nós que irá sofrer um golpe profundo. Para nós, trabalhadores, é de vital importância podermos denunciar os golpes de secretaria que diariamente se tramam nas nossas costas: como do pão para a boca, precisamos da liberdade de dizer verdades incómodas.
António Louçã
membro da CT da RTP, jornalista