Colonialismos e impérios houve muitos. Para não ir mais longe, olhe-se a Península Ibérica, onde até as línguas mais antigas, que tinham alfabeto e tudo, foram cilindradas pela ocupação romana que nos deixou com variantes do latim. Discriminações com base na origem nacional, étnica, linguística ou religiosa também sempre existiram pela terra. E escravização de uns pelos outros também, por guerra, captura, para servidão, etc.
Mas não é disso que estamos a falar: nada destas localizadas discriminações se assemelha em escala e em violência ao racismo maior que se constituiu em sintonia com o tráfico de africanos escravizados para as Américas. Esse comércio infame de seres humanos arrancados aos lugares de origem, desumanizados, vilificados para trabalho inumano nas plantações de açúcar, café, algodão, etc., foi acompanhado de uma ideologia que hierarquizava os grupos, que justificava tal vilificação, que naturalizava as diferenças e as associava a expressão física e suas cores, com os chamados brancos no topo a merecer bem-estar e os chamados negros na base, destinados a trabalhar, com chicote, correntes, violência moral. Essa hierarquização foi codificada como “científica”, reproduzida, gerando mais trabalhos de medições e classificações – o que hoje chamamos pseudo-ciência racialista, obsoleta e desmentida pelas investigações genéticas que nos dizem haver apenas uma raça, a humana.
MAS.
Terminada legalmente a escravatura, abolido o tráfico há quase dois séculos, ultrapassado e negado pela ciência o conhecimento racialista, ficou o legado dessa vilificação e hierarquia inscrito nas crenças e práticas de alguns, que fazem renascer as “raças” que o racismo produz, e em justificações autocontidas normalizam em linguagem e actos racistas que se negue a corrida de táxi a “um preto”, se espanque “uma preta”, se insulte e triture nas esquadras e na praça pública mais “uns pretos”. Ou que se maltrate a pontapé até à morte. Alcino Monteiro foi morto num destes actos. Crime hediondo. Hediondo. Racista. Não nos calemos.
Cristiana Bastos
antropóloga