O provimento dado pelo Ministério Público e pelo juiz Carlos Alexandre à queixa de um dos principais responsáveis pelo assassinato de Alcindo Monteiro contra Mamadou Ba só pode ser entendido à luz de três fatores: a estratégia, já sobejamente demonstrada pela extrema-direita, de manter um permanente assédio jurídico a todas as pessoas que lhe fazem frente; a vontade do poder político de silenciar o ativismo antirracista que não lhe seja inócuo e cómodo e se atreva, nomeadamente, a apontar o dedo à inação do atual governo no avançar de políticas públicas de combate ao racismo; e o voluntarismo e óbvia disponibilidade do seu aparelho repressivo, do qual a (in)justiça é uma peça fundamental, para aplicar esse silenciamento e se colocar ao serviço da estratégia de guerra judicial.
Tudo isto, porque o racismo não é apenas um sentimento ou um preconceito individual ou coletivo. Ele é, juntamente com outras discriminações e opressões, um sistema político histórico e totalitário, estruturante da organização social e da pirâmide das relações de poder que estruturam as falsas democracias burguesas de hoje, tal como ocorreu em períodos históricos e regimes políticos precedentes, incluindo com o colonialismo e as suas formas presentes de continuação dissimulada. Ele garante a diferença material de acesso a recursos e possibilidades e condições de vida de umas partes da população sobre outras, seja em cada território, no interior de cada país, ou ao nível mundial. Ele garante a reprodução contínua das desigualdades, da exploração capitalista e da manutenção do poder das elites económicas, que os poderes políticos e o Estado representam, sobre a imensa maioria, bem como a sua resignação, a “bem” ou pela força bruta.
Mas, mesmo ignorando a natureza violenta do Estado, e fingindo que é verdadeira a ilusão de vivermos naquilo a que se chama um “Estado de Direito” ou uma “Democracia”, como se o mero e gigantesco fosso das desigualdades não constituísse, em si, a sua negação e uma forma de ditadura, é surpreendente verificar quão escandalosamente longe o atual poder político, e o sistema judicial, se atrevem a mobilizar recursos e ideologia para perseguir o movimento antirracista, e Mamadou Ba em particular, num contexto de normalização crescente de organizações fascistas e neofascistas e respetivos atores. O Ministério Público resolveu entrar na contenda política em torno do racismo, mas ignorou ostensivamente – e recusou-se a investigar – as múltiplas denúncias de Mamadou Ba sobre as ameaças de morte que lhe foram destinadas, recusando a sua proteção. O sistema judicial não hesita em levar a tribunal, com argumentação ridícula, uma suposta “difamação” a um criminoso reincidente, mas dorme descansado à medida a que se distorce cada vez mais o significado da Constituição da República no que respeita à existência de organizações fascistas, e é cego, surdo e mudo quanto à difamação permanente de Mamadou Ba, de Joacine Katar Moreira, da totalidade das comunidades racializadas em geral, e das comunidades Roma em particular, por atores políticos da extrema-direita. O poder político apaga e ilude sistematicamente – e, na verdade, convive bem com – a profunda infiltração da extrema-direita nas forças policiais e militares, mesmo quando denunciada com nomes, números, provas e factos. É realmente surpreendente o grau de distorção mas, ainda assim, compreensível. Os interesses das elites estão acima de qualquer regime político, e os fascistas ainda lhes podem vir a ser necessários – aliás, são. Mas o sistema de várias cabeças que age em conluio para esta distorção é também insuportável, irrespirável e, a prazo, insustentável. O conflito social prosseguirá o seu caminho, porque inevitável, e cada interveniente ficará para a História, não como a areia para os olhos que lança, mas como aquilo que fez e como aquilo que é. E somos cada vez mais as pessoas conscientes disso e da necessidade de uma alteração radical de sistema. Toda a solidariedade com Mamadou Ba, com os movimentos antirracistas e todas as pessoas alvo do racismo/ devoradas/violentadas quotidianamente por um sistema antropofágico e autofágico. A organização é a chave, e a luta continua.
Sérgio Vitorino
tradutor e intérprete; ativista pelo direitos sexuais e reprodutivos