Maria Eugénia Faria

Mamadou Ba, querido amigo,

Eu não te contei, nunca te contei, que nasci em Angola e que sou filha de colonos.

Vivíamos numa pequenina terra, que estava situada no Planalto do Huambo, a 60 kms da cidade do Huambo.

 Era uma terra muito rica em milho e com uma agricultura farta e saudável.

Havia poucas crianças na pequenina vila, a poucos kms nas sanzalas viviam as famílias negras, e nessas famílias havia crianças com as quais eu brincava.  Alguns colonos não deixavam os filhos brincarem com crianças negras, mas os meus pais e outros colonos não se importavam.

Como não havia brinquedos corríamos pelas matas, pelos campos de milho a ver quem agarrava quem. No pequeno ribeiro que cantarolava a passar entre as pedras, entrávamos na água e até fazíamos de conta que éramos muito bons a nadar, mas felizmente era só um ribeiro e não havia o perigo de nos afogarmos. Éramos livres de brincar, dividir rebuçados que comprávamos aos comerciantes , arrancar bananas de cachos de bananeiras que cresciam pela mata sem qualquer ordem. Crianças colonas ou crianças colonizadas eram livres de amar e brincar longe dos olhares dos colonos racistas. Sim, porque os colonos racistas achavam que as crianças brancas eram superiores às crianças negras e mulatas, o que não é verdade.

As crianças brancas usavam sandálias, mas nessas brincadeiras descalçavam- se para poder correr tão bem como os amiguinhos negros ou mulatos. E tantas vezes nos esquecíamos de levar as sandálias para casa, ficavam perdidas na mata ou no milharal, era uma chatice porque quando íamos para casa lá vinham os raspanetes dos pais. 

Lembro- me de uma vez numa dessas brincadeiras a correr no milharal, um amiguinho de cor negra ter tropeçado numa pedra, caiu e  ficou ferido numa perna. A ferida sangrou , mas com as folhas das maçarocas do milho, limpamos o sangue do nosso amigo, sentíamos que éramos bons médicos. O sangue do nosso amigo ferido era da cor do nosso, por isso nenhuma questão foi levantada.  Ele era igual a mim, igual a todos nós,  apenas com a pele escura, mas a cor da pele não interfere no amor e nas amizades. Eu gostava muito dele, todos nós neste grupinho, éramos felizes nas nossas brincadeiras e aventuras.

Eu era tão criança, desconhecia a palavra racismo. Mas os meus olhos viam, o meu coração sentia, que nessa pequena vila onde vivia, os negros ou até mulatos eram discriminados. E muito me doía quando na noite do ano novo os colonos se juntavam no clube da terra, com um rectângulo de mesas recheadas de comida e bebidas, a porta do clube aberta e crianças negras a espreitarem o manjar dos colonos, sem poderem ter acesso aos mesmos.

Na igreja da terra os negros ouviam a missa cá fora. E até nos cemitérios tinham um espaço próprio, longe do espaço onde eram enterrados os mortos. 

Nem o padre acompanhava os  funerais de negros, o que me fazia muita confusão, visto que na missa ele tantas vezes referia que toda a gente era filha de Deus. Se éramos todos,  porquê a separação?

Quando vim estudar para Portugal, convivi com amigos e colegas de cor branca e de cor negra. Tanto aprendi com eles, sobretudo nos nossos convívios de sábado à noite em casa de um ou outro, também muito nas bichas da cantina, hoje conhecida como cantina velha,  enquanto aguardávamos a vez do almoço ou jantar. 

Enquanto esperávamos pela comida, havia sempre troca de ideias entre três ou quatro amigos e isso levava- me em busca de literatura de filósofos políticos, fossem brancos ou negros, nomes  que eu desconhecia  assim como muitos livros que haviam escrito.

Já com três décadas de trabalho em Serviço Social, o curso que tirei, recordo aqui que em 1995, coordenei um projecto comunitário que envolvia três instituições de crianças de três bairros sediados no coração da Amadora. Desconheço se os mesmos bairros ainda existem ou se foram urbanizados.

Recordo que em conjunto com as educadoras das instituições, de entre os vários projectos, um deles era  fazer uma colónia de férias com as crianças, na primeira metade do mês de Julho. 

Quero aqui recordar um dia dessa colónia, que me causou grande tristeza. 

Nesse dia as crianças brincavam na praia, vigiadas pelas educadoras e vigilantes. 

Tal como aconteceu na minha infância eram crianças negras, brancas e mulatas, para elas a cor não importava, chega- se a um momento em que tudo é igual, a cor da pele mistura- se com o amor por quem nos faz feliz. O que importava era ter a felicidade de brincar.

E no prazer da brincadeira um grupinho de crianças entra numa luta na areia, mas uma luta inofensiva. Um homem que aparentava ter entre trinta ou quarenta anos estava a observar as crianças e desatou aos berros a perguntar quem era responsável, por aqueles miúdos. Eu que nem tinha reparado no homem, apresentei- me como responsável. 

O homem, em tom grosseiro perguntou- me se eu admitia que um preto se pusesse em cima de brancos? Respondi- lhe que era uma brincadeira na areia da praia, uma brincadeira que também podia acontecer dentro da própria instituição que as crianças frequentavam, uma brincadeira de crianças.

Disse- lhe também que não fazíamos distinção entre brancos e negros, se a criança negra estava em cima dos outros era pura brincadeira e não lhe dei mais satisfações, embora o dito homem fosse a resmungar palavras grosseiras quando se afastou.

Lembrei este episódio, porque estávamos no mês de Julho de 1995 e lembrei que o assassinato do jovem Alcindo Monteiro tinha decorrido em Junho de 1995. A atitude deste homem levou- me a pensar que quem  é racista não entendeu o que se passou na noite em que assassinaram o Alcindo, sem dúvida que gente racista terá pensado que a vítima terá sido a causadora de problemas.

Para ti, Mamadou Ba, gostaria de te convidar a seguir comigo, com milhares de amigos nossos, os caminhos das cores do Arco-íris. 

Ficaremos tão felizes que quando percorrermos esses caminhos, iremos encontrar corações de várias cores que despejam sangue igual ao de todos nós, que despejam amor, fraternidade, paz e democracia. 

Faremos uma colorida corrente que neutralizará o racismo e ódio que tanta gente transporta consigo, que tanto sangue faz derramar.

Um forte abraço do tamanho do Universo.

Maria Eugénia Faria
serviço social