Judite Canha Fernandes

         Demorou-me tempo conseguir escrever este texto. Apenas ontem dei-me conta da razão de tamanha lentidão. Ao ler o que se passava, fiquei em choque. Mas não foi apenas isso, aparentemente o que sentia era que não conseguia entender. Literalmente. Por vezes, sei-o, não entender é uma busca pelo refúgio da infância, quando algo desse “não entendimento” nos protegia das agruras que a realidade nos impunha. Hoje, posso explicar o que não conseguia entender: É para mim incompreensível que um tribunal, em pleno estado de direito, (escrevo estas duas palavras e elas ficam, estranhamente, a ecoar), faça prosseguir uma queixa por difamação pela seguinte afirmação de Mamadou Ba: “(…)uma das figuras principais do assassinato de Alcindo, o hammerskin, Mário Machado, (…)”. A mesma pessoa, cujas afirmações documentadas de incitamento à violência tenho dificuldade em ler e me recuso a repetir, a mesma pessoa que o mesmo tribunal, ou outro, de todo o modo o mesmo sistema de justiça, precisamente no processo sobre o assassinato de Alcindo Monteiro, considerou Mário Machado envolvido, referindo no acórdão “cada autor é responsável pela totalidade do evento, pois sem a acção de cada um o evento não teria sobrevindo”, passava-o agora a vítima de “difamação” por palavras que diziam, embora de outro modo, o mesmo que anterior tribunal tinha afirmado. Então, em que ficamos?!? Aqui residia a perplexidade como uma sombra pesada, com que não conseguia me relacionar: Como relacionar-se com uma justiça suportada em tribunais que, conforme os meses ou os juízes, retiram valor ao que eles próprios afirmaram? De novo a expressão a ecoar estranhamente. Estado de Direito, Estado de direito, estado de direito…

Como não conseguia chegar a este texto, respondi primeiro a este apelo de solidariedade dedicando ao Mamadou a leitura de um poema[1].  Talvez pareça estranho que o Mamadou me faça primeiro lembrar poesia e não um texto “político” (como se a poesia não fosse também política, enfim), mas de facto o que primeiro me veio à mente foi um poema. Li-o, não apenas por que acho poesia – no sentido em que a palavra transcende o mundo – a persistência do Mamadou na defesa intransigente daquilo em que acredita. Recordo James Baldwin “Nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado, enquanto não for enfrentado.[2]” Falo de poesia porque, em alguns dias, é uma das raras coisas que pode segurar-nos a sanidade.
Porque em alguns dias, neste mundo, repito, ora mergulhamos no esquecimento da infância, ora na poesia, para que um sorriso nos permita arrancar do torpor. Toda a solidariedade, Mamadou.

Judite Canha Fernandes


[1]   O poema foi “Lisboa revisitada”, do poeta brasileiro Augusto Meneghin.

[2]   James Baldwin  “As Much Truth As One Can Bear”

Judite Canha Fernandes
escritora