Susan de Oliveira

No país onde vivo se estabeleceu por quatro anos um regime de extrema-direita, “neoliberal na economia e conservador nos costumes”, diziam eles. Mas, na verdade, era profundamente anti-democrático, reacionário e com raízes nazi-fascistas muito evidentes. Sabíamos bem disto desde o princípio, mesmo antes de triunfarem nas eleições democráticas de 2018 para, em seguida, começarem a destruir a democracia e sua institucionalidade desde dentro do Estado. Chamamos a esse regime de bolsonarismo. A personagem principal desta história de degradação política é um homem medíocre e narcisista que se projetou nacionalmente alguns anos antes de se tornar presidente por conta de um perfil belicoso, agressivo, racista, misógino, homofóbico, xenófobo, hipócrita religioso, miliciano e autoritário e habituado à proteção política do Estado para o cometimento de diversos crimes associados ao seu perfil. Mas estes nunca foram tratados devidamente e de forma a conter este homem que se tornou presidente legalizando a compra de mais de um milhão de armas em quatro anos de governo, cerca de 600% a mais do que havia antes. Este homem se negou a comprar a vacinas durante a pandemia de Covid-19 e confrontou a OMS negando a eficácia das mesmas em campanha aberta contra a vacinação. Essa atuação criminosa foi responsável por mais de quatrocentas mil mortes evitáveis. Além disso, foi responsável por uma devastação legalizada e sem precedentes que ameaça a existência dos povos indígenas, da Floresta Amazônica e o clima do Planeta. Exemplos sumários de sua atuação e bem conhecidos no mundo todo.

Poderiam ter parado a sua escalada política muito antes disso, quando ele era ainda deputado federal e ofendeu a honra de sua colega parlamentar, a deputada Maria do Rosário, dizendo que não a estupraria porque “ela não merecia”. Ele achava que o estupro era um privilégio para as mulheres que considerava bonitas. Também poderiam tê-lo processado e cassado seu mandato após ter votado a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, em homenagem ao conhecido torturador Coronel Brilhante Ustra. Disse ele: “Contra o comunismo. Pela nossa liberdade contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas. Por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”. Dilma fora brutalmente torturada durante sua prisão pela ditadura militar brasileira e ele a brutalizava moralmente com seu voto. Poderiam tê-lo parado antes ainda, quando fazia piadas racistas, xenófobas e homofóbicas com sarcasmo e ódio mal disfarçado nas redes de televisão e comunicação social.

Ao contrário disso, a este homem foi dado o direito de cometer crimes contra a honra de mulheres e fazer apologias do racismo, da homofobia e da violência contra pessoas de esquerda sem ser incomodado. Ato contínuo, a frase dita no seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, se tornou seu lema de campanha e de governo. E nunca seu governo foi chamado do que era: um regime de extrema-direita, nazifascista.  Após quatro anos e com a união de muitas forças, ele será retirado do poder, mas o que ele deixa é mais do que um legado, é uma ameaça civilizatória: os que deram de ombros e se recusaram a “dar nomes aos bois” no momento certo, após a derrota eleitoral de 2022, assistem horrorizados ao espetáculo da violência não apenas contra civis de esquerda, mas contra clérigos, contra o Papa, contra a polícia e contra magistrados da Suprema Corte. Da noite da derrota para o dia seguinte, manifestações bolsonaristas se transformaram em reuniões onde símbolos e referências nazistas são abertamente expostos. As casas e lojas de eleitores de Lula são marcadas como foi feito com os judeus na Alemanha hitlerista. E quando saem às ruas, igualmente são perseguidos. Esperamos que não tardiamente, investigações têm sido seguidas de prisões de membros de células neonazistas fortemente armados.

É precisamente neste contexto que reflito e escrevo sobre o julgamento de Mamadou Ba, meu amigo, mas não só por esta amizade. Como o que acontece no Brasil não diz respeito somente aos brasileiros, uma vez que as consequências de decisões políticas e judiciais (ou a ausência delas, o que dá na mesma) que envolvem a democracia e escolhas civilizatórias são repercutidas no mundo, o que ocorre hoje em Portugal é uma preocupação que requer atenção de todas as pessoas defensoras da democracia e dos direitos humanos. Sabemos que a extrema-direita mundial se fortalece quando um único indivíduo do seu espectro triunfa sobre as instituições democráticas e, sobretudo, quando utiliza essas próprias instituições para ganhar legitimidade. Essa mesma legitimidade, uma vez dada pelo sistema de justiça, é duramente perdida para o campo extremista que o quer de joelhos frente ao autoritarismo e à violência que, assim, se fortalece.

Mamadou Ba nos representa a todos e todas democratas, anti-fascistas, anti-nazistas, anti-racistas, feministas e ativistas por um mundo menos violento e menos desigual. Ele, como representante de tais valores, jamais poderia estar no banco dos réus numa situação de evidente criminalização política em face de uma intenção igualmente óbvia de colocar em dúvida a sentença que recaiu sobre o seu acusador. Se Mamadou Ba for condenado, a justiça portuguesa deixará de sustentar o que já proferiu e sua decisão terá como consequência não apenas o seu enfraquecimento, mas, concomitantemente, estará a fornecer armas jurídicas a inimigos históricos e notórios das próprias instituições democráticas.

Ao Mamadou Ba, minha solidariedade inabalável e minha voz com esperança de que a justiça portuguesa não se curve diante de artimanhas dos articuladores do ódio racial e inimigos da luta pela democracia e pela justiça social.

Susan de Oliveira
professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.